Seguimos na empreitada de arrancar band-aids literários e ampliar o rol de referências para lembrar que minha bolha é infinitesimal.
Minha lista seguiu com Patti Smith, nome místico de uma artista de muitas frentes, ícone da sua geração; Sylvia Molloy, grande crítica literária argentina; e Jorge Luis Borges, deus-pai da literatura do século 20 e além.
A sensação de arrebatamento depois de cada um deles é compartilhada: não sei quem eu era antes de saber disso, não sei o que lia antes disso.
A curadoria dos livros passa pela urgência de conhecer cada um, mas sem que exista necessariamente uma relação entre eles. É interessante ver como essa conexão se dá. Nesses três, descobri uma ponte geográfica evidente: a Nova York compartilhada por Patti e Sylvia e a Hispanoamérica de Sylvia e Borges.
Só garotos, Patti Smith
Companhia das Letras, tradução de Alexandre Barbosa de Souza
Alguns nomes emanam o zeitgeist de um recorte de espaço-tempo. Representações que podem ser “uma voz em uma geração”, que viveram experiências definidoras de um pensamento comum e conseguem transmitir esse espírito de sua época.
Quando falamos da noção de “América", Susan Sontag e Joan Didion, já mencionadas na primeira edição, se encaixam plenamente no papel. Patti Smith é outro nome incontornável desse panteão feminino.
Só garotos tem a premissa de registrar a relação entre Patti e o fotógrafo Robert Mapplethorpe, companheiro e amigo com quem viveu sua juventude e seus principais anos de formação em Nova York. Mas, ao fazer isso, ela não conta apenas o universo compartilhado entre os dois.
Suas memórias estão imbricadas na energia efervescente do final dos anos 60 — época que sempre achei mágica por concentrar os melhores álbuns dos Beatles, a Tropicália e a ascensão dos Mutantes durante o auge dos festivais de música com Caetano e Gil, a energia de The Mamas and The Papas e da queda da Hollywood golden age com a morte da Sharon Tate (tão bem documentada pela Joan Didion em Rastejando até Belém). Se perguntar o que tanto tinha na água daqueles anos de 1967 e 1968, a resposta é LSD.
E com isso ela cria um retrato de Nova York que tem algo de idílico. A cidade não é só pano de fundo, é personagem. É um imaginário tão consolidado que é possível vê-la sem nunca ter ido. São inúmeros nomes famosos e desconhecidos orbitando nessa galáxia artística cuja força gravitacional é o Hotel Chelsea — nome de um dos capítulos e casa de Patti e Robert durante alguns anos.
O Chelsea parecia uma casa de bonecas de Além da imaginação, com uma centena de quartos, sendo cada um deles um pequeno universo. Eu vagava pelos corredores tentando encontrar seus espíritos mortos ou vivos. […] Adorava aquele lugar, sua elegância surrada, e a história ali contida de modo tão impregnado. Havia rumores de que baús de Oscar Wilde apodreciam no fundo do porão, que sempre inundava. Ali Dylan Thomas, submerso em poesia e álcool, havia passado suas últimas horas. […] Bob Dylan compusera "Sad-eyed lady of the lowlands" no nosso andar, e dizem que Edie Sedgwick, exagerando na dose, pusera fogo no quarto enquanto colava seus cílios postiços com a chama de uma vela.
Foi a NYC contemporânea a Andy Warhol, Jimi Hendrix, Bob Dylan e Janis Joplin que viu a ascensão da mulher que tinha a certeza de querer ser artista. Me encantou, desde o início, o quanto seu próprio destino foi alterado pelo contato com a arte quando, aos doze anos, pisou num museu pela primeira vez.
[…] secretamente eu sabia que havia sido transformada, comovida pela revelação de que os seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver.
Quando se conhecem e passam a viver juntos, a determinação compartilhada entre ela e Robert se equipara apenas ao tamanho da devoção de um ao outro — desde quando passavam fome até a consolidação da carreira artística de ambos. Esse amadurecimento passa por diversas fases, criando um emaranhado de referências e relações que vão compor seu universo em um apoio mútuo que dura até a certeza de que ambos estão seguros caminhando sozinhos.
Quando li a autobiografia da Rita Lee, me fascinei com seu senso radical de liberdade. Parece uma característica inerente a algumas pessoas, prescindir de seu entorno e apenas ser. Patti sabia o que queria. Insistiu durante alguns anos e, com Robert, foi.
Conteúdos relacionados:
O álbum Horses, nascido do contexto descrito no livro, lançado em 1975.
“Você ficou famosa antes de mim”: a música Because the night e o episódio do podcast La voz de vida, que conta a história do primeiro sucesso de Patti.
Uma seleção de fotos para conhecer a obra fotográfica de Robert Mapplethorpe.
The rebirth of New York’s legendary Hotel Chelsea, matéria na Traveller.
Descobri que quero ler:
Linha M e Devoção, também dela.
Figurações: ensaios críticos, Sylvia Molloy
Editora 34, organização de Paloma Vidal & tradução de Gênese Andrade
Além de Nova York, a primeira pessoa também é comum entre Patti e Sylvia. Figurações traz ensaios, gênero em que o eu é fundamental para conectar dois pontos, e que nesse caso ganha a forma do eu, leitora. Para além disso, a seleção de textos críticos organizada por Paloma Vidal olha para escritores latino-americanos que compartilham da mesma premissa: seu deslocamento.
Escrever fora propõe sempre esse vaivém: não se chega nem se regressa totalmente. No melhor dos casos, a gente sente que participa de dois mundos, o que deixou e o que habita. No pior — talvez o mais frequente —, sente que não participa de nenhum.
O pressuposto desse deslocamento é físico: ele passa por uma análise da obra de autores geograficamente distantes de sua origem — que se transfigura em um deslocamento de perspectiva de quando o eu se torna o outro.
Esse exercício começa com a própria autora. Molloy foi uma pesquisadora argentina nascida em 1938, tendo vivido nos Estados Unidos por mais de quarenta anos.
Ser outro, em qualquer grupo que se quer homogêneo, significa também representar esse outro, não só encarnar uma diferença, mas ter que explicá-la, torná-la aceitável. Do outro anônimo que se aspira ser, passa-se a ocupar o lugar do native informant, ou seja, um “informante” chamado a traduzir sua cultura para que o outro a entenda e o aceite. Porém, como costuma acontecer com as traduções (assim como com os questionários antropológicos), em geral, se pede ao informante para confirmar o que já se acredita saber.
Nessa chave de leitura, ela analisa relatos de viagem de Sarmiento e Victoria Ocampo, a obra de Alejandra Pizarnik e José Martí, os desdobramentos de Borges enquanto narrador e o ocultamento da sexualidade de Teresa de la Parra. Uma tessitura entre os autores que formavam o caldo literário dos países hispano-americanos entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20.
Não achei um mero acaso que os dois ensaios que permaneceram comigo foram justamente os de autoras mulheres — Victoria Ocampo e Teresa de la Parra. Não raro algo particular a uma mulher é universal ao gênero, sensação presente em cada livro de Annie Ernaux. Ao abrir uma fresta para acessar essas obras, esses ensaios convidam ao deslocamento também do leitor para a própria pele de quem se lê.
Por tudo isso, Figurações foi preciso em atender a premissa da newsletter de ampliar minhas referências. Ele antecede a leitura de uma teia de nomes latinos e traça caminhos para tentar entendê-los. O livro termina com quatro ensaios sobre diferentes facetas de Borges, o que me deu não apenas um gancho como um ponto de partida para o próximo livro da lista.
Conteúdos relacionados:
Retazos, una conversación con Sylvia Molloy. Uma entrevista de meia hora muito gracinha, gravada três anos antes de sua morte, abordando os temas de deslocamentos, memórias, retalhos.
A escrita do limítrofe, texto da Revista Cult publicado em 2023.
Descobri que quero ler:
Viver entre línguas, textos ensaísticos e autobiográficos que segue explorando o entre-lugar - amplamente citado por Zambra no livro que dá nome a esta newsletter, Tema libre.
Desarticulações, seguido de Vária imaginação, edição compilada de suas duas obras que também tratam de memória e ficção.
Correspondência, cartas trocadas entre Victoria Ocampo e Virginia Woolf, com tradução de Emanuela Siqueira (queridíssima), Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli (minha ex-profe de francês!).
Ifigênia, diário de uma jovem que escreveu porque estava entediada, de Teresa de la Parra.
O Aleph, Jorge Luis Borges
Companhia das Letras, tradução de Davi Arrigucci Jr.
Diante de mim tenho uma muralha: falar de Borges. Como eu ouso falar de Borges? Vou terceirizar a dificuldade justamente para Sylvia Molloy. Em “Traduzir Borges”, ela cita uma frase lida em uma resenha.
“Já sabemos que não se pode ver Veneza pela primeira vez mais do que uma única vez". A pergunta deveria ser feita de outro modo: houve, algum dia, uma “primeira vez” em que experimentamos o texto de Borges?
Sim, como quanto a Veneza, houve uma primeira vez e não (também como com Veneza) não houve nunca uma primeira vez porque Borges, como Veneza (como Kafka, ou como Paris, ou como qualquer locus de cultura), esteve desde sempre, sempre já lido, disseminado em peças heterogêneas em direção ao passado como em direção ao futuro. […] Borges já está, desde sempre, contaminando os textos que o precedem, antecipando essa “primeira vez” em que o lemos.
Escolhi começar pela jugular: O Aleph. Publicado originalmente em 1949, tem 17 contos. A história que dá nome ao livro fazia parte do meu imaginário já havia algum tempo.
Entrar em contato com o texto nessa premeditada primeira vez é de certa forma engraçado, porque você já sabe características e elementos que vai encontrar. Mas a experiência em si é completamente única. Você abre o livro, se depara com “O imortal”, conto fantástico (in both ways) sobre o efeito da imortalidade humana, e só então entende o que te espera.
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho.
Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do casual. Entre os Imortais, por sua vez, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem.
Borges te lembra que a literatura se conecta com a noção de universal.
Encontrei nele uma ampla gama das características comumente associadas ao escritor: enciclopédico e referencial; menções a espelhos, tigres, labirintos, universos, infinitos; a ideia do duplo a todo tempo. Mas também entendi que no mesmo conto de apenas seis páginas ele vai contar a história de um guerreiro do cerco de Ravena e falar que isso o lembrou de outra coisa — hm, será que é a história dos cavaleiros mongóis que queriam fazer da China um infinito campo de pastoreio? Na verdade não, é uma história da minha avó mesmo. É assim, um embaralhado de referências que você nunca ouviu falar costuradas à familiaridade de sua Buenos Aires, criando uma obra tão paradigmática que vai abrir na história uma fenda a partir do qual tudo vai dialogar com ele.
Por isso, queria retomar um trecho da Sylvia Molloy: Borges já está, desde sempre, contaminando os textos que o precedem.
A partir de O Aleph, vejo Borges como uma figura messiânica. Existe um tempo antes e um tempo depois dele. O tempo antes é permeado pelos autores que agora anteveem sua obra, espécie de profetas que prenunciaram aquilo que viria. Quando vive seu tempo, assim como o messias, seu conhecimento sobre a obra antecessora é profundo, de forma sempre referencial, e sua clareza sobre o papel que cumpre na humanidade é precisa. A quem vier depois, só resta ser influenciado por sua obra durante muitas, infinitas, gerações.
Não é exagero. A mais recôndita memória dos homens, do senegalês Mohammed Mbourgarr Sarr, meu livro preferido em muito tempo, virou outro agora que eu acesso sua fonte direta. Exemplo claro do novo paradigma com o qual olhar para tudo. Borges como o Aleph.
[…] vi a circulação do meu sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a transformação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a Terra, e na Terra outra vez o Aleph e no Aleph a Terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos tinham visto aquele objeto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem contemplou: o inconcebível universo.
Conteúdos relacionados:
Episódio Pelos labirintos de Jorge Luis Borges, do podcast Página Cinco: entrevista com Julio Pimentel Pinto, um dos mais importantes pesquisadores do Borges no Brasil, ajuda a decodificar a entrada e as referências desse pequeno universo labiríntico.
Com apenas 12 minutos e direto ao ponto: o episódio Como começar a ler Jorge Luis Borges, do Nexo, fala com quatro pesquisadores da obra de Borges e dá caminhos por onde começar.
Três encontros com Borges, texto de Pedro Corrêa do Lago na Piauí sobre ter encontrado o escritor três vezes no mesmo dia.
Descobri que quero ler:
Atlas, relatos de viagens de Borges com fotos de María Kodama.
O livro de areia, outro livro de contos, citado por Milton Hatoum como uma interessante porta de entrada, e Ficções, citado frequentemente como um dos maiores de toda a obra, junto de O Aleph.
Meus avisos paroquiais finais, nesta edição, vão incluir uma sugestão de livro que surrupiou a fila dos 30 e se impôs por seu tamanho. São Francisco é um livro-reportagem-documental-em quadrinhos-fotográfico que aborda três perspectivas de relações entre o rio e as pessoas ao redor dele: água, seca e obra. Foram mais de 2,5 mil quilômetros percorridos pela jornalista e quadrinista Gabriela Güllich e seu colega fotógrafo João Velozo. Da viagem surgiu esse relato excepcional que abrange diferentes aspectos do direito à terra. Gabi é designer na minha equipe de trabalho, e foi fascinante descobrir que um livro tão cuidadoso saiu de suas mãos.
Pensei, já no final desse texto, que gosto muito quando o texto se expande para outras artes, como as playlists de livros da Todavia - ou, como meu amigo Thiago Souza fez, 15 filmes que conversam com seu novo romance, Do teu fantasma vejo só o coração. Então, como promessas não são muito meu forte, talvez e só talvez tenhamos uma playlist Tema livre num futuro próximo.
Na próxima newsletter:
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace
Escrever, Marguerite Duras
A morte de Ivan Ilitch, Liev Tolstói
Obrigada por apoiar esse pequeno projeto, e nos falamos na próxima edição - quem sabe ela não chega mais rápido da próxima vez. No promises.
Muito massa esses percursos de leituras. Li Borges com 20 anos, gesto juvenil da minha parte, não entendi nada. Quero ler de novo agora, ainda juvenil mas nem tanto.
Eu abro o texto e ja abro o skoob para guardar as indicações de livros <3